Andava entre os transeuntes com uma pressa que a ela
mesma parecia aflitiva. Era sempre assim seu caminhar. As pernas acostumadas
com o vulto uma da outra seguiam um balanço que não se atreviam a brecar.
Tinha, porém, certo equilíbrio que não permitia nenhuma linha ser interrompida
por curvas: não cambaleava, mostrando precisão em cada passo ávido e no entanto
o barulho abafado pelo zunir da multidão. O barulho de tanta gente a fazia
esquecer o silêncio que dela não era quebrado senão pelo taco de madeira em seu
sapato? E por que usava sapatos com tacos de madeira? Embora não falasse, ela
sorria. Era quase um escárnio em seu rosto, um sorriso de desprazer. Ela assim
o entregava a quem passasse. Sentia com isso uma angústia, um desamor tão
profundo por si mesma mas não largava o sorriso. Queria pensar que convencia
alguém de sua felicidade e que era assim que era viver. Mas além de feio, seu
sorriso era fatalidade de um instante: por causa de seus passos ultrapassados,
tudo o que os outros viam era o passado. O vislumbre do que se recorda com
doses desequilibradas de alegria e melancolia. Era um susto e também um evento
— ao passar por ela, só se viveria o futuro. Uma senhora passou por ela, e no
momento em que a avistou, ela já havia passado. Se a senhora ainda recorda da
mulher? Talvez ainda enxergue em pensamentos o borrão da silhueta despenteada.
Mas lembra-se bem do ruído sonoro dos tacos de seus sapatos, portanto sabe que
ela existiu. A mulher atravessa a rua na esquina. Seus cabelos são uma fumaça
livre; enfeitiçados. Na outra calçada uma criança segura em sua mão. Em revolta
pelo ato inocente, não largou sua mão: a agarrou com ainda mais vontade como se
pressentisse a dor da separação de coisa completa. Uma coisa só é completa
quando se entrega sem exigir, e a mulher não se rendeu à mão que tocava a sua.
Ela se apoderou, temerosa, conectando-se à criança sem que esta pudesse alguma
vez relutar: ela tinha uma aura pueril que deixava a mulher ainda mais inquieta
— porém nunca anulando seus passos, seu barulho, seu silêncio nervoso. A mão da
mulher feria a mão da criança enquanto que o corpo maior era quem se
incomodava. A criança não chorava, os pedestres enxergavam com horror seu
sorriso e a mulher, angustiada, em dores. Do outro lado da rua, a mulher sentia
dor. O ar esquentava: havia o calor. Agora seu rosto suava, mas ela sabia andar
e nenhuma vez titubeou. A esquina veio e, largando a mão da criança, percebeu
de sobressalto e com certo pavor que sua mão sangrava. A dor que sentia era a
de, não notando o desprendimento do que com amor nos segura, com gentileza nos
acompanha, só o que lhe restava era a sofreguidão do afastamento. Estando
alheia, assim, ao amor e à pureza que sustentava na mão, prendeu os seus
passos, sentindo o que se pode chamar de desespero: na multidão que lhe
ultrapassara e a quem tanto falsa e horrivelmente sorriu, ela sentiu-se perdida
e no entanto atada a todos. Mas sabia que estava sozinha, paralisada pelo
choque. Sangrando. A criança pensou nela por um tempo. Havia achado-a estranha e
divertida, mas tinha as mãos limpas demais para tocar no que por essência é uma
lembrança do futuro, e isso ela jamais compreenderia. Ela não sabia, inclusive,
que a mulher sangrava. Mas a mulher, em silêncio, atravessando corpos em
contramão, fingindo com horror um contentamento e ultrapassando os passos
alheios — a mulher sangra.
Autor: Geraldo Gomes
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