Autor: Geraldo Gomes
O
gato negro me olha. O que será que ele vê? Hoje mesmo, nu e sem pudores,
olhei-me no espelho. O corpo inteiro. E então vi que havia uma criatura tão
necessitada e no entanto tão volúvel que resignei-me. Mudei meu olhar e de
relance, como acidente fatal do destino, resvalei meus olhos nos olhos que me encaravam
do espelho. Eles eram castanhos, cor da terra rica que a chuva com alegria
molhou e já húmida irá parir. Meus olhos em contraposto estavam murchos, mas por
alívio também húmidos. Sairia deles algum fruto. Por detrás do pensamento eu
olhava meus pés, mas pensava em raízes. O que era afinal que eu via? não posso
dizer porque o mistério a mim ainda continua. A criatura não sorria para fora
do espelho, estava tão fragilizada, tão cansada que por fim percebi que nos
olhos terrosos o que havia era um pedido de trégua. Voltei aos olhos e a
criatura balançou a cabeça. Meus cabelos livres relaxaram. O que se pede com os
olhos é o que se implora com a alma? Sim. E já pensei numa maneira sensível de
dar descanso à criatura; eu estava nu. Tão nu estava que me joguei na poltrona
ainda assim mesmo sem me importar com a janela aberta. Não tinha pudores. O
cansaço me toma de forma tão voraz que estou em cólera constante. Apago o
cigarro no cinzeiro e afogo a cabeça para trás. Dissimulo mas sei que do
espelho a criatura ainda me observa. Não se trata de sentar numa poltrona. Eu
poderia estar deitado numa cama d’água ou boiando numa piscina de azul denso e
ainda estaria cansado. A criatura, ainda volúvel. O perigo que se espreita
chega manso, em passos de plumas. Mas é esse o medo de consome um mundo
inteiro. Há um medo tão arrebatador que causa síncopes, letargias, diarreias —
tão devagar e disfarçada que vem; é o impacto de uma bomba trazida pelas asas
leves de pássaros negros. A criatura no espelho pressente, no entanto, quando
há essa aproximação do que vem aos poucos. Este é um dos motivos por estar tão
cansada: ser antecipada ao sentir. Tudo à ela parece vir primeiro, ela já é
vítima antes. Já sofre antes. Voltei ao espelho. Regressei aos olhos, dessa vez
timidamente com o desejo único de compreender, embora não soubesse o segredo:
não se compreende alma; não se entende uma essência. Sente-se. Sente-se ao
entregar-se por completo à essa alma. Neste estado esotérico me aproximei do
espelho e num gesto que a mim foi de pura compaixão, estendi um braço —
estiquei os dedos para tocar na humidade daqueles olhos que eram os meus mais
profundos. Um sobressalto e um soluço repentino: em um ato que a mim pareceu
recíproca compaixão, estendeu seu braço e com extrema gentileza tocou meu
rosto. Houve então ecos graves no quarto: meu coração em descompasso. Meus
próprios olhos humedeceram num instante, e o perigo afinal chegara. Então houve
o medo. E houve a perda do solo e da luz me tornei alérgico: fechei os olhos e
puxei as cortinas. Por que no escuro há tanta segurança? Por que o homem grande
fecha os olhos antes de ser esbofeteado? E por que também antes do beijo? Por
que crianças cobrem-se toda com o cobertor, ficando assim no escuro, quando
pensam nos medos da noite? A busca por refúgio, por segurança. Há uma segurança
no escuro, sim, pois que no escuro não se pode ver uma ameaça. E há também a
vulnerabilidade de que a ameaça esteja tão próxima, tão viva ao lado. — Mas
quando é escuro e também é silêncio — qual o nome desse tipo de segurança? O
terror que está na escuridão está somente nela, e sua existência, ainda que
exista de fato, é imaginação. É ingenuidade pura de criança. Embora estivesse
na segurança do escuro, sabia, como também sabia que o que se sente está no Ovo
da Galinha, que a criatura do espelho ainda, em melancólica expressão frágil,
olhava diretamente para mim. Eu olhava para minha nudez no escuro. Um corpo que
não se vê existe? Eu estava de olhos bem abertos e o que era meu corpo naquele
momento se tornou uma extensão do escuro do quarto. E o medo que se sente
quando se está no escuro porque se te medo de estar no claro — como é que se
chama? Mas eu sabia que naquele quarto de breu só havia eu e o espectro de mim.
Meu fantasma. Sim, ele me amedronta às vezes porque não aprendi a controlar o
que não se controla. Mas no escuro eu não o temia: tinha apenas o medo que era
da criatura no espelho, que por pouco era eu. E por pouco também eu era o
fantasma. — Desse momento em diante, o que para mim foi o dia? Se fui escalado
por tantos medos que aquele que era tão perigoso deglutiu-se no escuro do
quarto. Mas não abri as cortinas: veio ainda um quarto medo que me fez
permanecer na poltrona, no luto do cómodo, no silêncio que era de bênção e
catarse: esse último medo foi minha última respiração antes de adormecer — tive
medo que, ao trazer a luz para o quarto e me olhasse novamente no espelho, a
criatura ainda estivesse olhando para mim. Agora furiosa mesmo que, pelo menos
naqueles instantes, inofensiva. Eu bem sei que teria mais um medo, este maior
que os outros: eu teria medo da fúria de mim espelhada.
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