Autora: Vanessa Neto
Todas
as noites, Rita tinha o mesmo hábito. Era já como um ritual: arrumar
num armário, delicadamente, as mágoas que o seu esposo lhe causara. Embrulhava-as
com bastante subtileza; embora ficasse com as mãos doridas nunca as largava
enquanto não as embrulhasse devidamente. Cada mágoa tinha a sua prateleira, e
cada uma delas todas empilhadas da mesma maneira. As discussões, guardava-as
todas numa caixa grande que punha numa enorme gaveta. Tudo o resto, estava à
vista de quem abrisse. Assim que abria o armário perdia todas as forças ao ver
tanta coisa inócua. A
sensação que tinha quando as depositava, ao fechar o armário, era de total
leveza e liberdade. Ao
fechar a porta, dando um suspiro de alivio, sentou-se na beira da sua cama.
Esticou os braços para os lados, fechou os olhos e pôs-se a cantar.
Levantou-se
bruscamente ao lembrar-se que tinha um outro armário, ao qual , já não abria há
muitos anos. Dirigiu-se a ele e muito vagarosamente abriu, com a curiosidade de
saber se tudo o que guardava, ainda lá estava.
Amor,
sonhos em comum, lealdade, respeito, eram as coisas que lá se encontravam, porém
já sem vida. Só serviam para exposição. Não causavam o impacto que o outro armário
lhe causava, a sensação de que cada peça ainda se mantinha viva lá dentro.
Rita tinha
depositado toda a felicidade naquele armário esquecido, quando o seu casamento
passou de sonho a pesadelo. Apercebeu-se de que aquele armário estava quase
vazio, e o armário onde guardava as mágoas estava já completamente cheio.
Dirigiu-se
então, descalça, aos dois armários e
retirou de lá peça por peça de cada mágoa e cada pedaço que sobrara dos restos
do armário da felicidade.
Colocou
tudo na balança. Todas as mágoas num lado e as peças da felicidade do seu
casamento no outro. A
balança partiu-se. A base onde foram colocadas as peças do sofrimento, caíra de
tanto peso que tinha. Rita
olhava para tudo aquilo indignada. Era como se estivesse a ver a si própria no lugar
da balança. Ela
estaria completamente abaixo se guardasse consigo todas aquelas coisas.
Tal
como habitual, após o trabalho o seu esposo estaria a jantar num lugar qualquer
com o senhor “alguém" e chegaria no
meio da madrugada.
Rita
recolheu de seguida todas as coisas que havia recebido de seu esposo, e
deixou-as por cima da cama, no lugar onde ela dormia. No lado do seu esposo,
deixou uma carta:
''Vou-me embora. A nossa balança
partiu-se. O armário da nossa felicidade já há algum tempo que não recebe nenhuma
peça, mofou. O armário do meu sofrimento está abarrotado, daqui a pouco sai
tudo de lá e começa a invadir-me.
Pesei tudo o que me deste ao
longo destes anos todos. As mágoas pesaram mais! Não quero este peso comigo.
Eu nasci para andar de alma leve, espírito tranquilo. E não para carregar o
peso das tuas tralhas comigo. Beijos.
P.S : Amo-me.''
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