Autor: Geraldo Gomes
As
ruas alvas não me agradam mais. A noite que cai, por mais escura, é o que me
acolhe. A escuridão faz das minhas costas o berço de asas pesadas. Como voar?
pergunto ao vento que surge quando respiro. Sem nenhuma resposta descanso a
cabeça no travesseiro.
Não
irei dormir, isso é uma ilusão. O sonho que se tem poda à noite minhas asas
pesadas, mas acordo cansado pela manhã, como se tivesse batalhado mil vezes sem
pausa para uma prece.
Mas
não batalho, nunca batalhei. Meus conflitos são passivos ao mundo, diria
condescendentes. Mas sinto-me cansado ainda assim, porque o mundo me cansa: o
ceticismo do mundo me enfraquece. Sou pó, uma estátua invisível amando o que
não se toca. Sou pó com a forma que o mundo me vê. Pois à minha vista sou
disforme, tenho um corpo amorfo adaptável à vida, ao mundo, uma vez que o mundo
não se adapta à mim. E me cansa tanto amor e desejo de zelo quando o que o
mundo vê é uma casca da galinha – pois ao ovo não há preocupação em se ver, o
ovo é o absurdo que evitam por medo do desconhecido. O ovo é a limitação
humana.
E
por que me importo com a falta de carinho no mundo? Porque o mundo sem carinho
não é mundo: é a maior das mentiras. Não há felicidade porque não há paz na
falta de carinho. Olhe nos meus bolsos e veja se encontra algo lá. Não. Olhe
nos meus olhos, é lá que guardo meu carinho. No ovo.
Quando
eu era criança, sonhava – não, pensava que havia algum tipo de comemoração
universal, em um dia de tanta glória humana que tudo se aproximaria do
esplendor divino, em que o céu se abriria numa claridão serena, o vento
sopraria fresco e gentil, a grama, as pedras quadradas das ruas, a areia e toda
edificação receberiam um esbranquiçar terno. Assim como o coração dos homens,
onde haveria uma harmonia quase incômoda. E neste bendito dia haveria um tipo
de amor grave entre eles, um respeito e comunhão difícil, mas atraente. Era a
conquista do que se chama felicidade, pois que se necessita desse amargor para
compreendê-la.
Mas
eu estava apenas sendo criança. A rua alva era uma imagem de humanidade, e isso
era ser feliz com a vida, com mundo.
Ao
crescer me dei conta da utopia neste pensamento. A ignorante inocência admitia
esta utopia como me admitia ser criança. Mas “crescer” também quer dizer trocar
de pele, dolorosamente. E nessa nova pele, já familiarizado com a dor, perde-se
muito da sensibilidade da inocência.
Hoje
– depois de relutantemente ter mordido a maçã – percebo que a noite me permite
ser mais lúcido. A noite me engasga com os caroços que tive que engolir durante
o dia e me faz vomitar. A noite é a minha obrigação de viver, é o aguilhão que
me abençoa com o cansaço: ele existe com o propósito de felicidade, dando-me em
troca a agonia. A pressão que se faz no meu peito é a que algum dia só aliviará
quando o mundo descobrir o que é carinho. Aí não mais será utopia a felicidade.
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