De
todas as formas de arte, que dominavas com tamanha mestria, a música era a tua
favorita. Passavas manhãs a escrever, tardes a dançar, noites a representar e
as madrugadas eram reservadas para fazer magia com os sons.
Gostavas
de tocar guitarra, baixo, violino e piano... Este último, era o que me causava
mais admiração e imensa curiosidade.
Sentavas-te
num banco e analisavas os papéis dispostos a frente do piano... Sempre ralhaste
comigo por chamá-los de papéis em vez de partituras. Eu desculpava-me, mas
voltava a cometer o mesmo erro depois de vinte minutos.
Honestamente,
nunca compreendi metade das coisas que me tentavas explicar sobre pentagramas,
claves, mínimas e semi-mínimas.
Não
percebia como eras capaz de traduzir as notas, fazer corresponder cada som a
uma tecla e transformar aqueles rabiscos em melodias tão bonitas capazes de
converter o íntimo de qualquer alma mundana.
Tu
sorrias e, a resposta dos teus lábios aparecia em forma de beijo no meu rosto e
um olhar que mostrava perceber plenamente a minha ingenuidade.
Uma
coisa que nunca permitiste era que eu negligenciasse a tua arte, que olhasse
para ela como nada, apreciasse com olhos breves ou que a ouvisse com os ouvidos
poluídos pelo ruído do mundo.
Pedias-me
atenção, entrega e paixão.
''Esvazia-te de ti
mesma. Permite que eu te preencha.''
Ordenavas antes de começar a tocar.
Acatando
a tua ordem, eu desnudava-me de todas as minhas crenças e abria-me para novos
mundos, aqueles que juntos iríamos desvendar.
Assistir-te
e ouvir-te tocar sempre foi uma viagem para outra dimensão, não só em termos de
espaço mas também temporais. Eu ouvia-te num pretérito distante, num presente
constante e num futuro mais-que-perfeito. Fechava os olhos e logo percebia que
não estava em lado nenhum, mas em todo lado... ao mesmo tempo.
Na
tua subjectividade, eu encontrava a minha realidade. Apesar de não saber o
que te fazia passar anos trancado num universo particular feito de arte, eu
amava acompanhar-te.
Queria
conhecer cada centímetro do teu corpo, viajar nos recônditos mais profundos da
tua mente, mover-me na tua dança, perder-me nos teus encontros e, acima de
tudo, desejava perceber se tu eras feito de quê... Eu podia jurar que aquilo
que te constituía não era a matéria dos humanos... olhava para ti
como alucinação, sonho, estrela cadente, imaginação...
Colocas-me sentada no teu colo, e tocas ainda assim... ao som livre e melancólico, a alegria oculta nos gestos clandestinos...
— A vida não me basta, Kayla.
Estas verdades não me alimentam.
Revelaste, num murmúrio...
bem pertinho do meu ouvido.
Paraste de tocar para me
abraçar.
Não compreendi o propósito da
afirmação. Quais verdades? O que foi que moveu a tua vida até então?
—É por isso que eu faço
arte... é por isso que eu faço música.
Afirmaste e, ainda que
silencioso, outro som ganhou vida numa tecla.
Foi quando eu percebi que tu passavas a vida em busca de
respostas, a recolher pequenas explicações que a humanidade não dá, informações
que o universo esconde. Criavas doces mentiras nos teus textos, na tua dança e
na tua música... convencias o mundo de uma coisa que só existia na tua cabeça,
fazias arte para desvendar o que está além da existência.
Calaram-se as minhas questões, dissiparam as acusações.
Percebi que, tal como o amor, a arte não pode ser
questionada. A arte deve ser apreciada com alma despoluída e os olhos livres.
No encaixe perfeito,
lembrei-me de uma frase de Virginia Woolf:
''Realmente,
eu não gosto da natureza humana, a menos que esteja toda temperada com arte.''
Esta era a tua matéria, estavas temperado com ela. A
arte era a flor da tua pele, e eu amava-te por isso.
Obedecendo
os passos da serenidade, virei-me para trás e beijei os teus lábios...
Entrelacei as nossas mãos e pedi que tocasses a música que nos uniu. Aquela que
tocaste no primeiro dia em que te vi, naquele concerto alusivo a música
estrangeira.
Lembraste com timidez, e sorriste com excesso
de amorosa embriaguez.
''Obrigado por me
deixares preencher-te.''
Agradeceste
e tocaste, por fim... e as notas eram certas, adequadas para aquele
momento. Eram as notas do nosso primeiro encontro, as notas do nosso
amor.
Dó com baixo em dó
Sol com baixo em si
Lá com baixo em lá
Lá com baixo em sol
Fá com baixo em fá
Fá com baixo em fá
sustenido
Sol com baixo em sol
Sol com lá bemol
Dó maior com dó
Sol maior com si
Lá menor com lá
Lá menor com sol
Fá com baixo em fá
Fá com baixo em fá
sustenido
Sol com baixo em sol
Sol com lá bemol
Como falar de arte sem falar de amor ? Porque amar é isso "arte" sem regras nem instruções , desconhecendo razões ... Sem saber explicar mas a espera de ser compreendido ... Amei o texto❤️
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